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O feriado nacional do 20 de novembro e a questão negra no

Vinte de novembro de dois mil e vinte e quatro, essa é uma data para se escrever assim, por extenso, pois hoje, como um ato simbólico para a valorização da luta contra o racismo e pela afirmação das heranças culturais afro-brasileiras, pela primeira vez em sua história, o Brasil celebra o Dia da Consciência Negra como um feriado nacional. A sanção da Lei 14.759/2023, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, oficializou o 20 de novembro como um feriado em todo o território brasileiro, em homenagem a Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares e ícone da resistência negra no país. 

Em 1971, um grupo de jovens negros se reuniu no centro de Porto Alegre com o objetivo de pesquisar a luta de seus antepassados e questionar a legitimidade do dia 13 de maio, data da assinatura da Lei Áurea, como um símbolo de celebração do povo negro. Como alternativa, propuseram o 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, para destacar a resistência e o protagonismo dos ex-escravizados na luta pela liberdade e promover uma reflexão sobre as questões raciais.

Em 2003, após 32 anos de persistência do movimento negro, em que este assumiu o 20 de novembro em seu calendário de lutas, organizando atividades em escolas, universidades, associações de bairros e no movimento social, a data, conhecida popularmente como “Dia da Consciência Negra”, entrou no calendário escolar. É certo que a reivindicação tornou-se institucional a partir da sanção da Lei 10.639/03, que obriga o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira em toda a educação básica, contudo, com a sanção da nova lei em 2024, o Brasil oficializa essa data como um marco nacional, através da sua inserção no calendário de feriados nacionais. Cabe ressaltar que essa sanção também ocorre em um momento de valorização da história afro-brasileira e das políticas de reparação histórica, vide o tema da redação da prova do Enem 2024.

Este feriado nacional é dedicado à reflexão sobre a história e a cultura afro-brasileira, mas também ao combate ao racismo estrutural, à discriminação e à desigualdade que ainda afetam a população negra no país. O movimento liderado por Zumbi, e por outras personalidades negras da época como Dandara, Aqualtune e Ganga Zumba, no Quilombo dos Palmares, que fica situado na Serra da Barriga, no estado de Alagoas, nordeste brasileiro, foi um dos maiores e mais importantes símbolos de resistência negra à escravidão no período colonial. A celebração do Dia da Consciência Negra é, assim, um tributo à memória dos ancestrais que resistiram e lutaram pela liberdade, e também um chamado à continuidade dessa luta por justiça social e igualdade. Desse modo, a consciência negra é também afirmar que nossos passos vêm de longe e que ainda há muitos direitos a serem conquistados.

A sanção de tal lei reverbera especialmente no Ceará, onde o movimento negro tem enfrentado desafios históricos, muitas vezes lidando com o apagamento da contribuição dos negros para a formação da sociedade cearense e com a negação da presença negra na cultura e na história do estado. A historiografia oficial tem tentado minimizar e apagar as contribuições e a presença negra no Ceará, o que se manifesta através de negação da afro-brasilidade na identidade cearense. Logo, o curso social e a história da população negra foi, muitas vezes, romantizada ou descontextualizada, o que levou a uma espécie de “branqueamento” da memória histórica, em que a contribuição dos negros à formação cultural, social e econômica do estado segue sendo ignorada ou minimizada.

Historicamente, o Ceará foi uma região de intensa atividade escravista, no entanto, ao longo das décadas, o patrimônio negro foi sistematicamente apagado, e a presença negra só é associada à escravidão. O estado que se vende como o primeiro a abolir a escravidão ainda perpetua perspectivas que negam e/ou ignoram a presença e herança material e imaterial deixados, ainda nos dias de hoje, pela população negra.


“Portanto, neste 20 de novembro de 2024, celebramos a luta e resistência de nossos antepassados, como também fazemos um chamado a todes, mobilizando para as lutas cotidianas. ” / Divulgação

No nosso estado, a conquista do feriado nacional tem um significado profundo, pois coloca em evidência as lutas históricas dos negros e sua participação no que chamamos de Ceará. Atos de resistência que, muitas vezes, foram ofuscados pela narrativa oficial que insiste em desconsiderar a realidade desumana do regime escravocrata, bem como as resistências e a luta pela liberdade, assim como o protagonismo dos povos negros. Nesse contexto, os movimentos sociais, em geral, possuíram e possuem papel crucial para a revisão da história e o resgate da memória de figuras históricas importantes como Chico da Matilde (Dragão do Mar), e de nomes como o de Preta Simoa e Damásia, e muitas outras heroínas que resistiram à escravidão e ao racismo, traçando estratégias de existência.

O movimento negro cearense tem se destacado como protagonista na luta contra esse apagamento, reivindicando a memória histórica dos negros no Ceará e a necessidade de visibilizar sua contribuição para a formação da identidade cultural e social do estado, o que se evidencia através da organização de diversas experiências associativas, a realização de eventos e celebrações, bem como pela cooperação para a formulação e implantação de leis antirracistas no estado.

O legado presente na revolta de Palmares serve de exemplo para as ações organizativas do movimento negro cearense contemporâneo, como a fundação do Grupo de União e Consciência Negra (Grucon), em 1982; a organização do Movimento Negro Unificado (MNU) no Ceará, a partir de 1995; a criação do Grupo de Valorização Negra do Cariri (Grunec), em 2001 na cidade do Crato; o Instituto Negra do Ceará (Inegra), em 2003; e a Comissão Estadual de Comunidades Quilombolas Rurais do Ceará (Cerquice), em 2005. Sendo que as quatro últimas experiências organizativas citadas seguem em total funcionamento e intervenção política.

Outros exemplos de intervenções negras no Ceará são as proposições de diversos eventos anuais, como os eventos “Artefatos da Cultura Negra”, a partir de 2009 no Cariri; o “Memorias de Baobá”, de 2010 em Fortaleza; e o Encontro dos Núcleos de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABIs) do Instituto Federal do Ceará (IFCE) desde 2015. Todas essas iniciativas são realizadas em confluência de instituições de educação superior, grupos de pesquisas e extensão, juntamente com os movimentos negros.

Celebrações como a “Festa do Rei Zumbi dos Palmares”, realizada desde 1984 no Quilombo de Conceição dos Caetanos – Tururu; as rodas tradicionais de capoeira no Arco Nossa Senhora de Fátima, em Sobral, desde meados da década de 1990; a “Semana da Consciência Negra” no Quilombo Sitio Veiga, desde 2009, em Quixadá; o “Festival Balaio Negro” em Itapipoca desde 2012; e o Prêmio Tereza de Benguela, organizado pelo MNU desde 2018, são exemplos de celebrações protagonizadas pelo movimento negro cearense contemporâneo.

Outros marcos importantes são as leis antirracistas, que nas últimas décadas vêm ganhando espaços nas discussões legislativas, e aqui destacamos algumas: a lei 15.953, de 2016, que instituiu o Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Estado do Ceará (Coepir); lei 16.197, de 2017, que dispõe sobre a instituição do Sistema de Cotas nas Instituições de Ensino Superior do Estado do Ceará; a lei 17.688, de 2021, que inseriu no calendário oficial o dia da Preta Tia Simoa e da Mulher Negra, além de instituir a Semana Preta Tia Simoa de combate à discriminação contra as mulheres negras no estado do Ceará; a criação da Delegacia de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou de Orientação Sexual – Decrim, no âmbito da Polícia Civil do Ceará, por meio da lei 18.250, de 2022; e, por fim, a criação da Secretaria da Igualdade Racial (Seir) do Governo do Estado do Ceará, em 17 de fevereiro de 2023, pela Lei n.º 18.310. Essas organizações, eventos e ações citadas acima, e muitas outras, fazem parte do rol de avanços alcançados graças às lutas coletivas e a organização dos movimentos negros, afinal, só a luta muda a vida.

Portanto, neste 20 de novembro de 2024, celebramos a luta e resistência de nossos antepassados, como também fazemos um chamado a todes, mobilizando para as lutas cotidianas. O momento exige de nós, cidadãs e cidadãos brasileiros, uma postura radical antirracista, anticapitalista e antipatriarcal na conquista de mudanças sociais e políticas públicas que promovam acesso e igualdade de direitos, e o feriado é, sem dúvida, um passo significativo nesse processo. 

Os reconhecimentos da importância da luta contra o racismo e de Zumbi dos Palmares como símbolo dessa luta acontecem de forma tardia, afinal, outros “heróis da pátria” foram e são celebrados como feriado nacional. Já se passaram 329 anos desde o assassinato de Zumbi dos Palmares e somente agora dá-se a devida relevância à luta antirracista e à celebração da nossa cultura.

Nesse sentido, é preciso que o Estado brasileiro assuma a sua culpa histórica pela escravização e, com isso, compreenda a necessidade de reparação dos danos causados por ela. Hoje, vinte de novembro de dois mil e vinte e quatro, podemos dizer que estamos colhendo os frutos lançados por Zumbi e por tantas outras referências na luta contra o racismo. Vamos à luta!

*Militante e atual coordenadora do GT de Formação Política do Movimento Negro Unificado (MNU) no Ceará. Membro da Executiva Estadual do PT Ceará. Bacharela em Humanidades pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia na Universidade Estadual do Ceará (UECE).

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato

Fonte: BdF Ceará

Edição: Camila Garcia

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