Letícia Strehl está se despedindo da direção da Biblioteca Central (BC) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) depois de oito anos de comando e 20 de servidora. Vai para outro grande desafio: a convite da reitora Márcia Barbosa e do vice-reitor Pedro Costa, assumirá a direção da editora da universidade.
Letícia possui graduação em Biblioteconomia, mestrado em Comunicação e Informação e doutorado em Educação em Ciências. Desde 2016, é diretora da Biblioteca Central coordenando tecnicamente as 31 bibliotecas do sistema da Universidade.
Em sua pesquisa, realiza estudos sobre indicadores de impacto no contexto da avaliação científica de países emergentes. Dedica-se também à popularização de conhecimentos sobre bibliotecas, comunicação científica e literatura escrita por mulheres a partir de palestras e textos, que estão sendo progressivamente reunidos em um site chamado Bibliotecas e Devaneios.
O Super 8 – pesquisa o uso da informação científica, programa de competência informacional que atende a milhares de alunos anualmente, é considerado o principal projeto de sua gestão à frente do Sistema de Bibliotecas da UFRGS.
Nesta entrevista, ela fala do novo momento da biblioteca, os projetos que implantou e está implantando e dos momentos difíceis que a universidade enfrentou no governo de Jair Bolsonaro, como a transformação do prédio da reitoria em um ‘forte de guerra’ pelo ex-reitor Carlos Bulhões, com o entorno cercado por grandes e portas mantidas chaveadas. A Biblioteca Central, por sua vez, foi escondida do público, com tapumes e portas internas trancadas. Agora, no seu novo desafio, pretende combater o negacionismo com a ciência.
Brasil de Fato: Pode-se dizer que o lançamento da Coleção Livre e a queda dos tapumes são os grandes marcos da reta final da tua gestão como diretora da BC?
Letícia Strehl: A verdade é que não. Esse marco final foi definido pela finalização de uma das pesquisas que realizamos sobre a história da Biblioteca Central e pela aprovação de nosso Regimento Interno no Conselho Universitário. O nosso regimento vigente datava de 1983. A criação da Coleção Livre foi mais um clamor de reparação a todos que trabalharam no prédio da reitoria sofrendo uma série de restrições de acesso ao principal prédio da universidade a partir de setembro de 2020, quando tivemos o terceiro colocado na lista tríplice nomeado a reitor pelo ex-presidente Bolsonaro. Gozando de escassa legitimidade por ter recebido baixíssima votação, a gestão deste reitorado transformou o prédio da reitoria em um forte de guerra: o entorno foi cercado por grades, as portas eram mantidas chaveadas, e a Biblioteca Central teve sua entrada alterada para reduzir o movimento de público no saguão da reitoria.
Não só a entrada foi alterada, mas a existência da entrada foi também apagada, sendo invisibilizada por um tapume soldado e cimentado na frente da porta. Depois de oito anos como diretora e trabalhando há quase 20 anos na Biblioteca Central, achei importante que não apenas retirássemos o tapume, mas o substituíssemos por uma coleção, criando, dentro da biblioteca, um marco histórico que referencia o ocultamento sofrido. Para cumprir seu propósito, o teor desta coleção deveria pautar uma defesa intransigente das bibliotecas e da liberdade de expressão. O melhor acervo para tal são as obras censuradas em diferentes tempos e locais, que são excelentes, mas proibidas por serem muito contundentes em sua crítica aos preconceitos e violências que geram tamanha injustiça social mundo afora.
Qual a razão alegada para ‘esconder’ a Biblioteca Central e a colocação de tapumes por ali?
Supostamente foi feita uma apreensão de obras de arte pela Polícia Federal, e a reitoria da UFRGS serviria de cofre para guardar provisoriamente estas obras. As obras nunca foram para o prédio e, mesmo que tivessem ido, teria sido uma decisão questionável: transformar um espaço público, constituído de oito andares, em um espaço de acesso restrito para guardar em uma pequena sala um patrimônio que não é da universidade. É evidente que seria um grande desperdício de recurso público. No final, o forte de guerra foi construído, mas nunca usado para esta finalidade. As obras nunca foram para a reitoria.
O que significa a inserção de livros proibidos/censurados no acervo da BC?
Faz mais de 40 anos que a Associação Americana de Bibliotecas defende os livros da censura ao comemorar anualmente a semana dos livros banidos com grandes festejos e manter listas que dão visibilidade a diferentes obras proibidas. A existência de áreas nos Estados Unidos tradicionalmente governadas por partidos ultraconservadores mantém acesa a chama da censura no país, opõem-se à disseminação de obras fundamentais para a denúncia da violência e de injustiças sociais cometidas em nome de toda a sorte de preconceitos: reacionarismo, racismo, misoginia, homofobia e negacionismo. Toni Morrison, Jorge Amado, Harper Lee, James Joyce, Simone de Beauvoir, Gabriel García Márquez, George Orwell, Chimamanda Ngozi Adichie e até Ziraldo fazem parte de uma longa lista de autores censurados. São obras absolutamente distintas, mas que foram banidas em certos momentos e lugares por terem em comum o fato de desafiarem as normas estabelecidas e contribuírem para a compreensão crítica de nossa sociedade.
Vivemos uma trégua da censura com o fim do regime militar no Brasil. Trégua que foi interrompida com a eleição de vários partidos de extrema direita para governos em diferentes instâncias políticas, incluindo a presidência da República. O bolsonarismo fez ressurgir uma guerra cultural no Brasil, tendo como seu mais destacado evento a perseguição ao brilhante Avesso da pele de Jeferson Tenório em pleno ano de 2024. Um livro perigoso somente para racistas e, portanto, criminosos. Ao contrário, além da excelente literatura, é uma obra essencial por educar para a equidade racial. Criar a Coleção Livre, trazendo essa mensagem para dentro do acervo, marca a queda do tapume e identifica um marco permanente de memória dentro da Biblioteca Central para a defesa dos livros em geral e a defesa desta Biblioteca em particular, que sofreu um ataque ao ser inviabilizada do saguão da reitoria da UFRGS em 2022.
O Departamento de Obras Raras é um dos grandes fenômenos da BC. Como foi o processo de aquisição da Coleção Eichenberg?
A ida da Coleção Eichenberg para a UFRGS ocorreu em um processo de desapropriação da coleção do bibliófilo Gert Eduardo Secco Eichenberg para pagamento de dívidas com a União contraídas por ele em sua atividade comercial. O desafio de manter reunida a coleção constituída de 40 mil volumes de itens bibliográficos sendo, destes, 10 mil obras raras, motivou a universidade a transformar seu Serviço de Bibliografia e Documentação em Biblioteca Central, mantendo sua atribuição de coordenação técnica das bibliotecas da UFRGS, mas ampliando suas funções e sua estrutura física para também abrigar a rica coleção Eichenberg.
O Departamento de Obras Raras é um incrível patrimônio da UFRGS. Além do acervo riquíssimo, concentra uma atuação muito significativa de bibliotecários que, desde sua origem, em 1976, desenvolveram um trabalho importante de acesso, recuperação e disseminação das obras raras através de serviços de catálogo, visitas e exposições. Ana Lúcia Rüdiger e Eugênio Hansen são os bibliotecários especializados que hoje atuam no Departamento.
Os cuidados com os livros, a conservação adequada e a restauração de obras têm importante papel na BC. Como é mantido todo este trabalho da BC? Quantos servidores?
Esse trabalho sempre foi realizado com muitas dificuldades na Biblioteca Central até a realização da grande reforma do espaço feita pela diretora Viviane Castanho em 2010. A biblioteca foi reaberta em 2012 com excelentes condições de conservação de acervo: controle de temperatura, iluminação e umidade. Além disso, a salinha de reparos transformou-se em um Laboratório, ganhando novo espaço e estrutura. Esse laboratório foi amplamente equipado com recursos do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] entre 2014 e 2015. Atualmente, Maria Luisa Damiani e Maria Lúcia Souto, nossas colegas técnicas em restauração, realizam atividades de conservação do ambiente e de intervenção nas obras. Além disso, possuem uma atuação de referência no estado, orientando bibliotecas dentro e fora da UFRGS para a conservação de uma ampla gama de acervos.
A diretora da BC é também responsável e dirige todas as outras 31 bibliotecas existentes na UFRGS?
A diretora da Biblioteca Central possui apenas a responsabilidade de coordenação técnica dos produtos e serviços das bibliotecas setoriais, ficando sua gestão administrativa subordinada às unidades de ensino e realizadas por seus bibliotecários-chefe. Mesmo tendo poder administrativo restrito, a função de coordenação técnica desempenhada pelo diretor é bastante importante, considerando ser o local de articulação das decisões sobre as coleções a desenvolver, as formas de organizá-las e o regramento da prestação de serviços aos usuários. Assim, além da coleção Eichenberg, a Biblioteca Central tem um papel importante e bastante pioneiro no Brasil de serviços para o desenvolvimento de políticas e procedimentos, catálogo e descoberta, repositório institucional e ações de extensão para promover competência informacional e leitura.
Como é o processo de eleição da diretora e dos chefes de cada biblioteca? Sistema democrático ou nomeação?
Desde a década de 1980, ocorre a consulta às equipes das bibliotecas para indicação ao reitor do nome a ocupar o cargo da direção da Biblioteca Central. Necessariamente, o postulante ao cargo precisa ser servidor técnico e ocupar o cargo de bibliotecário da Universidade. Votam na consulta os servidores lotados e em exercício nas 31 bibliotecas da UFRGS. Toda a indicação das candidatas feita pelas equipes (sempre foram mulheres) foi respeitada por reitores e reitoras.
O que a BC promove? Cursos? Exposições? Pesquisas? O Público pode pesquisar ou ela é restrita a estudantes e professores e servidores da UFRGS? Pode-se levar livros para pesquisar em casa? Quais livros?
As coleções da Biblioteca Central, assim como das demais bibliotecas da UFRGS, são de acesso aberto para consulta pelo público em geral. O único serviço restrito à comunidade universitária é o empréstimo domiciliar das obras. Além do acesso aos materiais impressos, as bibliotecas também oferecem ampla consulta a acervos digitais. Os de acesso aberto são acessíveis pelo Lume, repositório com a produção institucional da UFRGS catalogada pelas bibliotecas; e os de acesso restrito podem ser consultados a partir de computadores conectados à rede UFRGS. Algumas das 31 bibliotecas oferecem computadores para realização de pesquisa em informações científicas para o público em geral.
As obras raras podem ser pesquisadas?
A consulta às obras raras deve ser agendada com o Departamento de Obras Raras. Muitas destas obras são de livre acesso na internet e não precisam ser consultadas fisicamente. As solicitações são avaliadas pelo departamento e são atendidas sempre que comprovado que o acesso físico às obras é indispensável. As restrições de acesso são necessárias para a preservação da própria Coleção.
O que significa o Projeto Super 8?
Pesquisa e uso da informação científica congrega uma série de capacitações destinadas à formação de usuários de bibliotecas. O nome resulta de um modelo desenvolvido pelo Sistema de Bibliotecas da UFRGS a partir da adaptação de uma abordagem internacional chamada Big 6. Chama-se Super 8 porque as ações de capacitação em pesquisa e uso da informação científica para o desenvolvimento de atividades acadêmicas são definidas como se constituindo em 8 passos. O Super 8 oferece capacitações para o público em geral e atende mais de mil cursistas por ano (chegou em mais de três mil em 2020, ano da pandemia).
Aborda-se informações úteis sobre produtos e serviços virtuais de informação, o que possibilitou transformar a forma como as bibliotecas da UFRGS se relacionam com seus usuários. A virtualização dos acervos, que parecia ser uma ameaça ao valor atribuído às bibliotecas por séculos, tornou-se uma aliada pela extensão universitária. Como os usuários passaram a frequentar menos as bibliotecas, as bibliotecas passaram a ir até os usuários em salas de aula, auditórios, laboratórios e plataformas digitais para tornar acessível o complexo mundo: das bases de dados e dos gerenciadores de referências como ferramentas auxiliares de revisão da literatura científica; dos comportamentos que garantem o uso crítico e ético da informação; das estratégias que dão visibilidade à produção científica de um pesquisador; dos critérios de avaliação adotados em agências de fomento.
A equipe do Super 8 é formada por bibliotecários de diferentes bibliotecas setoriais sob a coordenação da Biblioteca Central. César Rolim, Luísia Alves e Vanessa Souza já foram os profissionais que coordenaram este importante projeto que congrega dezenas de bibliotecários da UFRGS.
Qual o seu próximo desafio na UFRGS?
Fui convidada pela reitora Márcia Barbosa e o vice-reitor Pedro Costa para assumir a Direção da Editora da UFRGS, considerando o compromisso da atual gestão com os preceitos da Ciência Aberta. Nas últimas décadas, a comunicação científica tem se desenvolvido para possibilitar o acesso cada vez mais amplo dos resultados de pesquisa, que são predominantemente financiados com recursos públicos.
Além de amplo, o acesso começa a ser feito a uma gama mais variada de informações: não se restringem mais à publicação de análises, mas contemplam a fase pré-avaliação (preprints), os dados científicos, os protocolos de realização dos experimentos, os códigos computacionais e assim por diante. O compromisso da gestão da Reitoria com a ciência aberta no âmbito da Editora requer uma reformulação das políticas e procedimentos adotados para ampliar o acesso à produção acadêmica da UFRGS e qualificar as práticas que visam à integridade em pesquisa. A ciência aberta é fundamental para o combate ao negacionismo e, portanto, será um grande desafio profissional que pretendo enfrentar com uma equipe muito qualificada que é a da Editora da UFRGS.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Vivian Virissimo